quarta-feira, 15 de outubro de 2014


Não há quem não tenha sua novela preferida. E quem, ignorando deslizes de roteiro ou escalações, dentre outros, não defenda sua trama favorita como se ela fosse um grande clássico. Sabemos, entretanto, que grandes clássicos são raros. São fenômenos que acontecem de tempos em tempos, nos quais texto, elenco e direção confluem para um resultado primoroso no vídeo.

São fenômenos que se tornam marcantes na história da teledramaturgia brasileira. Que representam uma mudança de comportamento na sociedade, uma nova estética para a TV e uma lembrança eterna para o grande público. Neste nicho, podemos incluir Vale Tudo, Roque Santeiro, Que Rei Sou Eu?, Rainha da Sucata, Água Viva e Dancin’ Days, todas exibidas na faixa mais nobre do Canal Viva. O Dono do Mundo, próxima atração do horário, não se encaixa nesse perfil (embora não deixe de ser uma boa novela).

Foi pensando em títulos para a faixa da meia-noite que eu e meu grande amigo Fábio Costa chegamos a Pecado Capital. A novela, cujo remake quase retornou ao Viva em duas ocasiões, é um clássico da teledramaturgia brasileira. E ninguém melhor que nosso sócio (já que este é seu segundo texto aqui) para comentar sobre. Obrigado pela colaboração de sempre, amigo!


Pecado Capital: duas versões de um clássico da teledramaturgia
por Fábio Costa

Em 1975, após ter consolidado as produções coloridas para o horário das 22h (e o próprio horário) e colorizado a então recém-criada faixa das 18h a partir da terceira produção do núcleo, Senhora, baseada em José de Alencar, a Rede Globo prosseguia com a colorização de seus horários de dramaturgia com as gravações da novela que substituiria Escalada, de Lauro César Muniz, na faixa principal, a das 20h.

Dias Gomes, após sucessivos êxitos às 22h (Bandeira 2, O Bem-amado, O Espigão), foi incumbido da tarefa de trazer o clima do horário para as 20h, e só aceitou sob a condição principal de não modificar seu jeito de escrever nem abrir mão de seus temas políticos. Sua mulher, Janete Clair, também já consagrada na ocasião após diversos sucessos às 20h (Véu de Noiva, Irmãos Coragem, Selva de Pedra, Fogo Sobre Terra), foi “rebaixada” para a faixa das 19h, na qual estreou Bravo! em 16 de junho daquele ano. Para 27 de agosto, programava-se a estreia às 20h de A Incrível História de Roque Santeiro e Sua Fogosa Viúva, a que Era Sem Nunca Ter Sido, chamada simplesmente de Roque Santeiro para facilitar.

Dias Gomes teve sua novela, dirigida por Daniel Filho, proibida de ir ao ar no dia da estreia, com cerca de 50 capítulos escritos, 30 gravados e 20 prontos para exibição, após o recebimento do comunicado da Censura dizendo que Roque Santeiro continha “atentado à moral e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja” e a notícia ser dada ao público, que passou a acompanhar naquele horário uma reprise providencial de Selva de Pedra, tapa-buraco para o período no qual se pensaria em como resolver o problema.

Janete Clair, que não havia engolido a mudança para as 19h, disse que de sua casa o horário das 20h não sairia, e se propôs a criar a toque de caixa uma nova novela para ser colocada no ar o quanto antes, aproveitando toda a equipe contratada para Roque Santeiro. Assim, enquanto o repeteco de Selva de Pedra fazia tanto sucesso quanto a exibição original de três anos antes (1972), ela se pôs a criar, acostumada aos curtos prazos e com a disposição extra de calar os que a tachavam de fantasiosa, alienante e melodramática demais.


Em 24 de novembro de 1975 foi ao ar o primeiro capítulo daquela que seria considerada a melhor novela da autora por muitos: Pecado Capital. O inspirado título batizava a história de dois homens, bastante diferentes entre si, mas que tinham em comum a obstinação pelo que desejam conquistar e a disposição de transpor todos os obstáculos que surjam nessa conquista. Um é José Carlos Moreno, o Carlão (Francisco Cuoco), chofer de praça que mora no Méier, zona norte do Rio de Janeiro, e cuida do pai doente, Raimundo (Gilberto Martinho). Está noivo de Lucinha (Betty Faria), operária das Confecções Centauro, bela morena de quem morre de ciúme.

Já no primeiro capítulo um acontecimento decisivo é mostrado ao público: Miguel (Zanoni Ferrite) e a amante Eunice (Rosamaria Murtinho) embarcam no Fusca de Carlão após Miguel assaltar uma agência bancária, e na pressa de escapar da perseguição policial Eunice acaba por esquecer a mala com o dinheiro do assalto no carro. Carlão só se dá conta do ocorrido ao chegar em casa, e fica embasbacado ao contar o dinheiro: oitocentos mil cruzeiros, grande quantia para a época – e mesmo hoje, se considerarmos a atual moeda, o real, embora não se possa equiparar Cr$ 800 mil de 1975 a R$ 800 mil em 2014.

Enquanto pensa no que fazer com aquele dinheiro, dividido entre a possibilidade de ser envolvido no crime ao entregar a mala para a polícia e a chance de ascender utilizando um dinheiro que, se é roubado, não foi roubado por ele, Carlão começa a se desentender com Lucinha devido a ela iniciar seus trabalhos de modelo fotográfico junto à agência publicitária Cítera, cujo proprietário Nélio Porto Rico (Dênis Carvalho) a conhecera ao filmar algumas tomadas na fábrica para um novo filme comercial das Organizações Centauro.

Aqui encontramos o outro protagonista masculino da história: Salviano Lisboa (Lima Duarte), dono da Centauro, que no início da novela chega aos 50 anos. Um viúvo que vive para o trabalho, no que se ocupa para driblar e esquecer o abandono em que se encontra, embora seja pai de seis filhos. Vicente (Luiz Armando Queiroz), Vitória (Theresa Amayo), Vinícius (Marco Nanini), Virgílio (Lauro Góes), Vilminha (Débora Duarte) e Valter (João Carlos Barroso) estão todos ocupados com suas próprias vidas, que em geral não incluem o pai. Os grandes amigos de Salviano são seu homem de confiança, Valdir (Emiliano Queiroz), apaixonado por Vilminha, e Bá (Elza Gomes), que o ajudara a criar os filhos após a viuvez.

Salviano se encanta com Lucinha à primeira vista, logo que a vê nos filmes comerciais produzidos por Nélio. Os dois se aproximam e se apaixonam, ao mesmo tempo em que Lucinha, cansada do machismo e dos preconceitos de Carlão, se desencanta do noivado, envolvida pela nova vida como modelo e, futuramente, quem sabe até atriz. Preterido, Carlão passa a fazer uso do dinheiro por diversos motivos, desde custear uma operação cardíaca para o pai até empreender negócio atrás de negócio para impressionar Lucinha, adiando sempre uma vez mais a devolução dos oitocentos mil cruzeiros às autoridades e temendo ser descoberto e preso. Ao passo que Lucinha e Salviano precisam enfrentar a resistência dos filhos dele, contrários à união, já que acreditam ser ela uma mera golpista que se aproveita da solidão e da ingenuidade do pai.

Eunice, a mulher de classe média entediada no casamento que se viu envolvida num assalto a banco graças ao amante, acaba presa ao ser denunciada pelo marido Ricardo (Moacyr Deriquém), quando este descobre tudo, e Carlão se aproxima dela cheio de remorso. Ela enfim reconhece nele o taxista em cujo carro esquecera a maleta com o dinheiro, mas os dois resolvem unir suas mágoas amorosas e se casam, embora Carlão não tenha deixado de amar Lucinha, que ao longo da trama vai se afastando cada vez mais não apenas da operária rude e sem modos que era, mas em especial da “Amélia” que o chofer de praça gostaria que ela fosse enquanto esposa.

O realismo implementado por Janete Clair em sua dramaturgia, que se antes já se fazia presente era aqui exposto de novo modo, mais aberto, menos amarrado, mais “real” com o perdão da redundância, no retrato das relações entre ricos e pobres fugindo ao simples maniqueísmo, e o subúrbio mostrado na televisão de forma pouco ou nada estereotipada, aliado à trama envolvente e bem conduzida, além da direção de Daniel Filho e Jardel Mello, fizeram de Pecado Capital um grande sucesso. As cores chegavam à novela das 20h da Globo junto com os injustos boatos de que, tamanho o realismo da história, na verdade era Dias Gomes quem a escrevia, e não a romântica Janete.


O final da novela, que mostra Carlão morrendo depois de uma série de agruras vividas em razão de ter ficado com o dinheiro do assalto, e a notícia dada no jornal na mesma edição que noticia o casamento de Salviano e Lucinha, se tornou emblemático. Não apenas porque matava um protagonista, mas em especial por ter fechado com chave de ouro a proposta de uma tragédia urbana nacional, pretendida e alcançada por Janete e Daniel. O ótimo resultado pode ser conferido no lançamento da novela pela Globo Marcas, num compacto de dez DVDs. Mas, como compacto não é íntegra, a faixa da meia-noite do Viva pode (e, por que não dizer, até deve, já que a existência de uma versão em DVD tem sido quase um requisito, por coincidência ou não, para as reapresentações) muito bem resgatar este que é um dos textos que compõem o cânone da nossa teledramaturgia, por assim dizer.


Clássico absoluto, marcante por diversos motivos, no final dos anos 90 a novela foi lembrada para marcar os 15 anos da morte de Janete e prosseguir com uma tendência que havia rendido alguns resultados positivos – a regravação de sucessos do passado, como Mulheres de Areia, em 1993, A Viagem, em 1994, e Anjo Mau, em 1997/98. Em 5 de outubro de 1998, às 18h, estreou o remake de Pecado Capital, em adaptação de Glória Perez – considerada “discípula” da autora – e dirigido por Wolf Maya e Maurício Farias.

O clássico tema de abertura, homônimo da novela, composto e interpretado por Paulinho da Viola, ganhou aqui uma releitura pelo grupo Só Pra Contrariar – a qual, para meu gosto e o de muitos espectadores, poderia ter dado lugar à gravação original mesmo. Francisco Cuoco, o Carlão dos anos 70, voltava agora como Salviano, numa homenagem ao ator em razão de sua relação pessoal de amizade com Janete Clair e de poder fazer parte novamente de um de seus trabalhos mais marcantes, nesta nova versão. Eduardo Moscovis e Carolina Ferraz, que acabavam de viver o casal Nando e Milena em Por Amor, queridinhos do público graças à boa química em cena e pelos beijos tórridos que trocavam ao som de Vanessa Rangel e sua “Palpite”, foram escalados para viver Carlão e Lucinha. Betty Faria e Lima Duarte apareceram em participações afetivo-especiais. Para viver Eunice foi escalada a talentosa Cássia Kiss, e Paloma Duarte vivia a personagem que fora de sua mãe, Débora Duarte: Vilminha, aqui transformada em clubber, modismo juvenil da época.

Na atualização, os oitocentos mil cruzeiros se tornaram dois milhões de reais, o bairro suburbano mudou de Méier para Marechal Hermes e foram criados e/ou modificados diversos conflitos da história em relação à versão original. Talvez o maior desacerto tenha sido o núcleo do bar do Seu Clóvis (Pedro Paulo Rangel), cujo filho Tenorinho (Eri Johnson) se fazia passar por herdeiro rico nas praias da zona sul, se bacaneando entre uma partida e outra de futevôlei. A esposa Otília (Íris Bruzzi) traía Clóvis descaradamente com o bicheiro Boca (Oswaldo Loureiro), figura temida em Marechal, enquanto a afilhada Ritinha (Camila Pitanga) disputava com Clarelis (Leandra Leal), irmã de Lucinha (no original, Emilene (Elizângela)), o posto de moça mais desejada/desejável do bairro. Em que pesem os talentos reunidos, infelizmente foi um núcleo que não funcionou.

Assim como não funcionou também a escalação dos atores que interpretavam os filhos de Salviano, de papel importante na trama já que, além de muitos, compunham o empecilho maior à realização do romance do pai. Thiago Lacerda (Vicente), Thaís de Campos (Vitória), Marcos Winter (Virgílio), Marcelo Serrado (Vinícius), Paloma Duarte e Jiddu Pinheiro (Valter) são todos atores reconhecidos, ainda mais desde a exibição da novela, mas não formavam um todo emocionante e coeso quando reunidos. Faltou alguma coisa.

Mas o grande desacerto desta segunda versão de Pecado Capital foi mesmo no trio principal. Cada um dos protagonistas – Cuoco, Carolina e Moscovis – caiu como uma luva em seus respectivos papéis, mas o triângulo em si, mola-mestra da história, junto com o poder do dinheiro sobre as pessoas, não surtiu o efeito esperado. Isso, mais a rejeição de Carolina ao fato de ter que beijar Cuoco em cena, contracenar com ele (o que, convenhamos, ela deveria ter analisado ao aceitar a personagem, já que isso era mais do que sabido e previsível), compôs o cenário para um casal que não funcionava, logicamente, e teve que ser separado porque a falta de entendimento entre os intérpretes saltava aos olhos do espectador menos atento a detalhes.

Com isso, a trama romântica principal teve que ser alterada drasticamente, deixando de seguir no mínimo possível ao original de Janete Clair e destoando de outras modificações feitas, mais aceitáveis, no resto da novela. Salviano e Lucinha cedem às pressões dos muitos filhos dele e ao amor dela por Carlão, que ainda se faz presente. Para fazer par com Salviano, enquanto Carlão e Lucinha se veem às voltas com o vai-e-volta do romance e a presença de Eunice na vida dele – entrecho mantido –, foi criada uma nova personagem: Laura (Vera Fischer), irmã da falecida esposa do milionário. Bom, ao menos a morte de Carlão no final da história foi mantida – embora se tenha chegado perto de mantê-lo vivo e deixá-lo feliz com Lucinha no último capítulo. Provavelmente Glória Perez quis compensar o desacerto de Salviano e Lucinha.

A segunda versão da novela não pode ser considerada um fracasso de audiência, já que conquistou índices em torno do desejado para o horário na ocasião – 30 pontos em média – e teve mais capítulos que a original (185, contra 167). Mas não foi uma novela que repercutiu da forma como repercutem os sucessos assim considerados.


Ainda assim, considero que sim, vale a pena vê-la de novo (parafraseando o título da sessão de reprises global), na Globo ou no Viva (que já quis reprisá-la, duas vezes até agora, mas cedeu a manifestações contrárias de uma parcela do público). Um belo exemplo de erros e acertos possíveis ao se refazer tamanho clássico. A espinha dorsal de Janete Clair (que, embora modificada, ainda era irresistível), os trabalhos do elenco e o fato de ser uma produção ainda não reprisada (como tantas, mas que contraria o que o Viva tem seguido até aqui, que é reprisar apenas o que já se reprisou), além de servir como registro do ciclo dramatúrgico dos anos 90, justificariam. Afinal, como já tem se tornado um bordão meu ao escrever sobre o assunto, nem só de sucessos arrebatadores deve viver um canal como o Viva – e, assim como muitos espectadores se manifestaram contra, certamente há outros tantos que são a favor de uma reprise da novela. Que venha.




O usuário Gorpo Silva disponibilizou no YouTube o compacto de Pecado Capital, exibido na faixa Festival 15 Anos, em 1980. Vale a pena conferir!

Um comentário:

  1. Lido e curtido!
    Mas, realmente, não gosto muito dessa novela. Não tem a força de uma novela das 8. Gosto do início e do fim.

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