Não
há quem não tenha sua novela preferida. E quem, ignorando deslizes de roteiro
ou escalações, dentre outros, não defenda sua trama favorita como se ela fosse
um grande clássico. Sabemos, entretanto, que grandes clássicos são raros. São
fenômenos que acontecem de tempos em tempos, nos quais texto, elenco e direção
confluem para um resultado primoroso no vídeo.
São
fenômenos que se tornam marcantes na história da teledramaturgia brasileira. Que
representam uma mudança de comportamento na sociedade, uma nova estética para a
TV e uma lembrança eterna para o grande público. Neste nicho, podemos incluir Vale Tudo, Roque Santeiro, Que Rei Sou
Eu?, Rainha da Sucata, Água Viva e Dancin’ Days, todas exibidas na faixa mais nobre do Canal Viva. O Dono do Mundo, próxima atração do horário,
não se encaixa nesse perfil (embora não deixe de ser uma boa novela).
Foi
pensando em títulos para a faixa da meia-noite que eu e meu grande amigo Fábio
Costa chegamos a Pecado Capital. A
novela, cujo remake quase retornou ao Viva em duas ocasiões, é um clássico da teledramaturgia
brasileira. E ninguém melhor que nosso sócio (já que este é seu segundo texto
aqui) para comentar sobre. Obrigado pela colaboração de
sempre, amigo!
Pecado
Capital:
duas versões de um clássico da teledramaturgia
por
Fábio Costa
Em
1975, após ter consolidado as produções coloridas para o horário das 22h (e o
próprio horário) e colorizado a então recém-criada faixa das 18h a partir da
terceira produção do núcleo, Senhora,
baseada em José de Alencar, a Rede Globo prosseguia com a colorização de seus
horários de dramaturgia com as gravações da novela que substituiria Escalada, de Lauro César Muniz, na faixa
principal, a das 20h.
Dias
Gomes, após sucessivos êxitos às 22h (Bandeira
2, O Bem-amado, O Espigão), foi incumbido da tarefa de
trazer o clima do horário para as 20h, e só aceitou sob a condição principal de
não modificar seu jeito de escrever nem abrir mão de seus temas políticos. Sua
mulher, Janete Clair, também já consagrada na ocasião após diversos sucessos às
20h (Véu de Noiva, Irmãos Coragem, Selva de Pedra, Fogo Sobre
Terra), foi “rebaixada” para a faixa das 19h, na qual estreou Bravo! em 16 de junho daquele ano. Para
27 de agosto, programava-se a estreia às 20h de A Incrível História de Roque Santeiro e Sua Fogosa Viúva, a que Era Sem
Nunca Ter Sido, chamada simplesmente de Roque
Santeiro para facilitar.
Dias
Gomes teve sua novela, dirigida por Daniel Filho, proibida de ir ao ar no dia
da estreia, com cerca de 50 capítulos escritos, 30 gravados e 20 prontos para
exibição, após o recebimento do comunicado da Censura dizendo que Roque Santeiro continha “atentado à
moral e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja” e a notícia ser dada
ao público, que passou a acompanhar naquele horário uma reprise providencial de
Selva de Pedra, tapa-buraco para o
período no qual se pensaria em como resolver o problema.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi3z9c6FKWeIW_ohfiFQvxFbSY05DgBlh7PH-08dD93IOg0yrRusffBChaLvtbT3b1zlnMcqiTOEj1gI1o45UqcVE-Lp53Fo19bSTVcE-ND4zmUkDz_ShxCjdmtcmjWf6hE1E57xCb3sV-_/s1600/selvadepedra.png)
Em
24 de novembro de 1975 foi ao ar o primeiro capítulo daquela que seria
considerada a melhor novela da autora por muitos: Pecado Capital. O inspirado título batizava a história de dois
homens, bastante diferentes entre si, mas que tinham em comum a obstinação pelo
que desejam conquistar e a disposição de transpor todos os obstáculos que
surjam nessa conquista. Um é José Carlos Moreno, o Carlão (Francisco Cuoco),
chofer de praça que mora no Méier, zona norte do Rio de Janeiro, e cuida do pai
doente, Raimundo (Gilberto Martinho). Está noivo de Lucinha (Betty Faria),
operária das Confecções Centauro, bela morena de quem morre de ciúme.
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgTEkYIpF9-lSjD8OjYTjVPpP-jaCwdYFOzeVvf1XIPdLRG3nf0UaTgfjVZ4D_heVbBxvbQWoAsu08M-BMSYQp7O0m8aah9eJl5e9_iSp1A7uGSPbd3OWsq8TkQ_DtQtQvBIpGucqorlnl2/s1600/PecadoCapital%5B24%5D.jpg)
Enquanto
pensa no que fazer com aquele dinheiro, dividido entre a possibilidade de ser
envolvido no crime ao entregar a mala para a polícia e a chance de ascender
utilizando um dinheiro que, se é roubado, não foi roubado por ele, Carlão
começa a se desentender com Lucinha devido a ela iniciar seus trabalhos de
modelo fotográfico junto à agência publicitária Cítera, cujo proprietário Nélio
Porto Rico (Dênis Carvalho) a conhecera ao filmar algumas tomadas na fábrica
para um novo filme comercial das Organizações Centauro.
Aqui
encontramos o outro protagonista masculino da história: Salviano Lisboa (Lima
Duarte), dono da Centauro, que no início da novela chega aos 50 anos. Um viúvo
que vive para o trabalho, no que se ocupa para driblar e esquecer o abandono em
que se encontra, embora seja pai de seis filhos. Vicente (Luiz Armando
Queiroz), Vitória (Theresa Amayo), Vinícius (Marco Nanini), Virgílio (Lauro
Góes), Vilminha (Débora Duarte) e Valter (João Carlos Barroso) estão todos
ocupados com suas próprias vidas, que em geral não incluem o pai. Os grandes
amigos de Salviano são seu homem de confiança, Valdir (Emiliano Queiroz),
apaixonado por Vilminha, e Bá (Elza Gomes), que o ajudara a criar os filhos
após a viuvez.
Salviano
se encanta com Lucinha à primeira vista, logo que a vê nos filmes comerciais
produzidos por Nélio. Os dois se aproximam e se apaixonam, ao mesmo tempo em
que Lucinha, cansada do machismo e dos preconceitos de Carlão, se desencanta do
noivado, envolvida pela nova vida como modelo e, futuramente, quem sabe até
atriz. Preterido, Carlão passa a fazer uso do dinheiro por diversos motivos,
desde custear uma operação cardíaca para o pai até empreender negócio atrás de
negócio para impressionar Lucinha, adiando sempre uma vez mais a devolução dos
oitocentos mil cruzeiros às autoridades e temendo ser descoberto e preso. Ao
passo que Lucinha e Salviano precisam enfrentar a resistência dos filhos dele,
contrários à união, já que acreditam ser ela uma mera golpista que se aproveita
da solidão e da ingenuidade do pai.
Eunice,
a mulher de classe média entediada no casamento que se viu envolvida num assalto
a banco graças ao amante, acaba presa ao ser denunciada pelo marido Ricardo
(Moacyr Deriquém), quando este descobre tudo, e Carlão se aproxima dela cheio
de remorso. Ela enfim reconhece nele o taxista em cujo carro esquecera a maleta
com o dinheiro, mas os dois resolvem unir suas mágoas amorosas e se casam,
embora Carlão não tenha deixado de amar Lucinha, que ao longo da trama vai se
afastando cada vez mais não apenas da operária rude e sem modos que era, mas em
especial da “Amélia” que o chofer de praça gostaria que ela fosse enquanto
esposa.
O
realismo implementado por Janete Clair em sua dramaturgia, que se antes já se
fazia presente era aqui exposto de novo modo, mais aberto, menos amarrado, mais
“real” com o perdão da redundância, no retrato das relações entre ricos e
pobres fugindo ao simples maniqueísmo, e o subúrbio mostrado na televisão de
forma pouco ou nada estereotipada, aliado à trama envolvente e bem conduzida,
além da direção de Daniel Filho e Jardel Mello, fizeram de Pecado Capital um grande sucesso. As cores chegavam à novela das
20h da Globo junto com os injustos boatos de que, tamanho o realismo da
história, na verdade era Dias Gomes quem a escrevia, e não a romântica Janete.
O
final da novela, que mostra Carlão morrendo depois de uma série de agruras
vividas em razão de ter ficado com o dinheiro do assalto, e a notícia dada no
jornal na mesma edição que noticia o casamento de Salviano e Lucinha, se tornou
emblemático. Não apenas porque matava um protagonista, mas em especial por ter
fechado com chave de ouro a proposta de uma tragédia urbana nacional,
pretendida e alcançada por Janete e Daniel. O ótimo resultado pode ser
conferido no lançamento da novela pela Globo Marcas, num compacto de dez DVDs. Mas,
como compacto não é íntegra, a faixa da meia-noite do Viva pode (e, por que não
dizer, até deve, já que a existência de uma versão em DVD tem sido quase um
requisito, por coincidência ou não, para as reapresentações) muito bem resgatar
este que é um dos textos que compõem o cânone da nossa teledramaturgia, por
assim dizer.
Clássico
absoluto, marcante por diversos motivos, no final dos anos 90 a novela foi
lembrada para marcar os 15 anos da morte de Janete e prosseguir com uma
tendência que havia rendido alguns resultados positivos – a regravação de
sucessos do passado, como Mulheres de
Areia, em 1993, A Viagem, em
1994, e Anjo Mau, em 1997/98. Em 5 de
outubro de 1998, às 18h, estreou o remake de Pecado Capital, em adaptação de Glória Perez – considerada
“discípula” da autora – e dirigido por Wolf Maya e Maurício Farias.
O
clássico tema de abertura, homônimo da novela, composto e interpretado por
Paulinho da Viola, ganhou aqui uma releitura pelo grupo Só Pra Contrariar – a
qual, para meu gosto e o de muitos espectadores, poderia ter dado lugar à
gravação original mesmo. Francisco Cuoco, o Carlão dos anos 70, voltava agora
como Salviano, numa homenagem ao ator em razão de sua relação pessoal de
amizade com Janete Clair e de poder fazer parte novamente de um de seus
trabalhos mais marcantes, nesta nova versão. Eduardo Moscovis e Carolina
Ferraz, que acabavam de viver o casal Nando e Milena em Por Amor, queridinhos
do público graças à boa química em cena e pelos beijos tórridos que trocavam ao
som de Vanessa Rangel e sua “Palpite”, foram escalados para viver Carlão e
Lucinha. Betty Faria e Lima Duarte apareceram em participações
afetivo-especiais. Para viver Eunice foi escalada a talentosa Cássia Kiss, e
Paloma Duarte vivia a personagem que fora de sua mãe, Débora Duarte: Vilminha,
aqui transformada em clubber, modismo juvenil da época.
Na
atualização, os oitocentos mil cruzeiros se tornaram dois milhões de reais, o
bairro suburbano mudou de Méier para Marechal Hermes e foram criados e/ou
modificados diversos conflitos da história em relação à versão original. Talvez
o maior desacerto tenha sido o núcleo do bar do Seu Clóvis (Pedro Paulo
Rangel), cujo filho Tenorinho (Eri Johnson) se fazia passar por herdeiro rico
nas praias da zona sul, se bacaneando entre uma partida e outra de futevôlei. A
esposa Otília (Íris Bruzzi) traía Clóvis descaradamente com o bicheiro Boca
(Oswaldo Loureiro), figura temida em Marechal, enquanto a afilhada Ritinha
(Camila Pitanga) disputava com Clarelis (Leandra Leal), irmã de Lucinha (no original, Emilene (Elizângela)), o
posto de moça mais desejada/desejável do bairro. Em que pesem os talentos
reunidos, infelizmente foi um núcleo que não funcionou.
Assim
como não funcionou também a escalação dos atores que interpretavam os filhos de
Salviano, de papel importante na trama já que, além de muitos, compunham o
empecilho maior à realização do romance do pai. Thiago Lacerda (Vicente), Thaís
de Campos (Vitória), Marcos Winter (Virgílio), Marcelo Serrado (Vinícius),
Paloma Duarte e Jiddu Pinheiro (Valter) são todos atores reconhecidos, ainda
mais desde a exibição da novela, mas não formavam um todo emocionante e coeso
quando reunidos. Faltou alguma coisa.
Mas
o grande desacerto desta segunda versão de Pecado
Capital foi mesmo no trio principal. Cada um dos protagonistas – Cuoco,
Carolina e Moscovis – caiu como uma luva em seus respectivos papéis, mas o
triângulo em si, mola-mestra da história, junto com o poder do dinheiro sobre
as pessoas, não surtiu o efeito esperado. Isso, mais a rejeição de Carolina ao
fato de ter que beijar Cuoco em cena, contracenar com ele (o que, convenhamos,
ela deveria ter analisado ao aceitar a personagem, já que isso era mais do que
sabido e previsível), compôs o cenário para um casal que não funcionava,
logicamente, e teve que ser separado porque a falta de entendimento entre os
intérpretes saltava aos olhos do espectador menos atento a detalhes.
Com
isso, a trama romântica principal teve que ser alterada drasticamente, deixando
de seguir no mínimo possível ao original de Janete Clair e destoando de outras
modificações feitas, mais aceitáveis, no resto da novela. Salviano e Lucinha
cedem às pressões dos muitos filhos dele e ao amor dela por Carlão, que ainda
se faz presente. Para fazer par com Salviano, enquanto Carlão e Lucinha se veem
às voltas com o vai-e-volta do romance e a presença de Eunice na vida dele –
entrecho mantido –, foi criada uma nova personagem: Laura (Vera Fischer), irmã
da falecida esposa do milionário. Bom, ao menos a morte de Carlão no final da
história foi mantida – embora se tenha chegado perto de mantê-lo vivo e
deixá-lo feliz com Lucinha no último capítulo. Provavelmente Glória Perez quis
compensar o desacerto de Salviano e Lucinha.
A
segunda versão da novela não pode ser considerada um fracasso de audiência, já
que conquistou índices em torno do desejado para o horário na ocasião – 30
pontos em média – e teve mais capítulos que a original (185, contra 167). Mas
não foi uma novela que repercutiu da forma como repercutem os sucessos assim
considerados.
Ainda
assim, considero que sim, vale a pena vê-la de novo (parafraseando o título da
sessão de reprises global), na Globo ou no Viva (que já quis reprisá-la, duas
vezes até agora, mas cedeu a manifestações contrárias de uma parcela do
público). Um belo exemplo de erros e acertos possíveis ao se refazer tamanho
clássico. A espinha dorsal de Janete Clair (que, embora modificada, ainda era
irresistível), os trabalhos do elenco e o fato de ser uma produção ainda não
reprisada (como tantas, mas que contraria o que o Viva tem seguido até aqui,
que é reprisar apenas o que já se reprisou), além de servir como registro do
ciclo dramatúrgico dos anos 90, justificariam. Afinal, como já tem se tornado
um bordão meu ao escrever sobre o assunto, nem só de sucessos arrebatadores
deve viver um canal como o Viva – e, assim como muitos espectadores se
manifestaram contra, certamente há outros tantos que são a favor de uma reprise
da novela. Que venha.
Lido e curtido!
ResponderExcluirMas, realmente, não gosto muito dessa novela. Não tem a força de uma novela das 8. Gosto do início e do fim.